Sempre levei a crença de que o crescimento que eu procurava viria com a consciência de cada ato, de cada passo. Continuo acreditando, mas o que percebo agora é a confusão que fazia entre ser consciente e controlar; um controle para o qual eu sempre dei grande parte das minhas forças, visceral, na tentativa de fugir do que é imprevisível, incontrolável, escuro e dolorido. Não é a toa que as minhas impressões sobre vida e morte se fundiam e confundiam; o movimento parecia cessar, sufocado, apertado e o caminhar ficava lento frente à velocidade dos meus sonhos, à ansiedade dos meus desejos e à impaciência com as minhas próprias imperfeições.
É. Tantas vezes condenei aqueles que pareciam estranhos à si mesmos, tantas vezes me incumbi da tarefa de apresentá-los às suas próprias almas achando que a minha, eu já conhecia, que a minha, já estava perto de mim, entre os meus braços. Grande engano. Falso controle desse ego teimoso.
As almas são da vida, são a vida (a vida são as almas) e ela não cabe apenas entre os meus braços, no meu laço. O que a minha razão conhece sobre mim mesma?! Pra qual distância ela pode me levar se apenas alguns passos ela pode enxergar?
Por mais que aperte a vida bem forte entre as minhas mãos, ela escorre entre os meus dedos, diluída em meu suor. O esperado se frustra e o traçado se desvirtua.
Me desespero e custo enxergar que toda vez o descontrole das rédeas me levam pro lugar, que no fundo, eu sempre quis estar. Por que não confiar?
A menininha doce, cheia de cuidados por todos os lados, sempre confundiu a sua sensibilidade com uma fragilidade que nem mesmo sabe se existia. O medo do medo que o medo dá quase sempre tornou o desconhecido, intolerável. O parque de diversões que vivia no sonho se tornou sem graça diante da possibilidade da desconhecida sensação de estar de ponta-cabeça com os pés a balançar. O beijo do menino que a cativava com o olhar, perdeu a doçura com o medo de não saber como lidar.
Por mais que crescesse, a dificuldade em deixar a menininha, no seu devido lugar, se retratava pela procura, incessante, por um outro alguém que pudesse me ajudar. Difícil perceber que as minhas próprias mãos me acalentam, que o meu próprio afago me conforta, que o meu próprio amor cura as feridas.
Quanto tempo passiva frente ao próprio destino? Quantas vezes ensaiando o ato heróico? Quantos amores perdidos? Quantos momentos não-vividos para permanecer no morno, naquilo que não aquece nem acalma? Maldita mania de viver no outono.
Ainda bem que as forças de vida-morte-vida vencem sempre o meu esforço em controlar. Descolorida seria essa vida se os meus passos fossem somente até onde o meu medo pode chegar.
Há um tempo atrás pedi que o ano fosse uma eterna festa de carnaval; comprei o convite pro baile e coloquei o vestido mais bonito; passei o batom vermelho e botei a flor no cabelo. Apenas (e não apenas) cometi o erro em insistir para carregar junto, agarrada ao peito, aquela mala velha, desgastada. Tão cheia, não dava conta de levar os novos sorrisos, com tantos medos, não tinha, sequer, lugar para os novos anseios. Nem sei o motivo certo pra levar tamanho fardo; a levo há tanto tempo, mas nunca a abri e nem sei, realmente, o que carrego dentro.
Entre goles e marchinhas de carnaval, o homem de sorriso bonito olhou-me com um olhar de dar arrepios e eu, com as pernas bambeando, destrambelhadamente quis seguí-lo sem a mala soltar. Levei um tombo certeiro que atingiu o meu joelho. Destino ou não, a menininha voltou a morar entre as pernas da mãe e a insistência na resistência concretizou a sua vontade de não se dobrar. O que era suportável, tornou-se dolorido.
A raiva que me tomou conta, não deixou perceber que fui lançada, exatamente, pra onde sempre achei que queria estar. O tempo ali demorou pra passar, mas como tudo nessa vida tem sua razão de ser (e de não ser), também foi o remédio pra cicatrizar as feridas que ainda sangravam e foi a dor necessária pra fazer gritar o meu desejo por liberdade.
A mala velha não me serve mais.
A vida insiste em me mostrar que não há o que temer, que não há nada de horrendo em nenhum lugar. Mesmo aqueles monstros, que habitam a escuridão do meu armário, são possíveis de enfrentar.
Sussurros ao pé do ouvido já me disseram que existe força aqui. Resolvi então, procurar. Às vezes me perco no caminho e o medo toma conta; as mãos paralisam, a boca formiga, o suor escorre em minha face e os meus olhos se enchem de água.
A tarefa de lidar comigo mesma realmente é árdua. Não adianta olhar pro lado e procurar por alguém pra fazer aquilo que somente eu posso fazer por mim mesma. Não adianta sentar e chorar esperando que a dó faça alguém lá no céu realizar algum milagre. Não adianta fugir. Não tem pra onde fugir. Não tem como se distanciar da dor porque a dor sou eu mesma e não há como sair de mim. O caminho é meu. Parece solitário. E é meu. Só meu.
O que tudo isso me faz sentir e me força acreditar é que entre o desespero e a desesperança existe um espaço pra brotar a confiança. O que não pode faltar é a persistência em resistir á tudo aquilo que pareço não suportar. E mesmo fora do alcance do meu olhar, um tambor no meu peito anuncia que a força realmente mora por lá.
O nó no peito ainda não está desfeito; a respiração ainda é ofegante; a ansiedade pela cura ainda me tira o sono, mas a única saída é lutar, todo dia lutar. E quando o sol se põe e a noite cai, eu me pego a pensar contra quem é que vivo a lutar. Eu procuro, procuro, procuro. Todas as luzes se apagam, os monstros e diabos vão se embora e a única que permanece ali, na minha frente, é aquela mala velha que eu estava a carregar.