7 de novembro de 2009

Por inteira



A mãe conta que, quando criança, a menina era uma bonequinha. Vivia com vestidos, lacinhos na cabeça, distribuía sorrisos para todos e dormia que era uma beleza. O pai, preocupado, até a levou ao médico para saber o motivo de tanto sono! Não dava trabalho algum e mantinha todos os carinhos ao seu redor.
A tão amada bonequinha cresceu com medo de deixá-la de ser. A força direcionada para não deixar a boneca se perder, deixou os seus mais íntimos desejos sufocados, sem ar pra poder viver.
Muitos anos se passaram com a angústia do peito que guardava tantos sonhos irrealizados. Muito tempo pra perceber que fazer pelo Outro, para que este fizesse por ela, era o caminho mais longo, repleto de frustrações e que, por fim, somente enganava sua fome.
Convencer-se que a boneca não é gente e que querer ser esta é renunciar uma parte viva, tão importante de si mesma, foi (é) uma tarefa muito difícil. Enfrentar, talvez, o seu maior medo, frustrar o Outro e, mostrar a este o escorpião que também a habita, a paralisou até então. Porém, a espera e o desejo por ser inteira trouxeram, na experiência do outro extremo, algo transformador.
Já faz um tempo que o corpo não está a deixando mentir. As sensações, desejos e fúrias reprimidas estão expostas, escancaradas nela por inteira. O egoísmo, tanto tempo latente, invadiu-a também. Desta vez, não há mais força e nem desejo em devolvê-los ao escuro.
Não se sabe ao certo onde está a boneca. Hoje ela se sente escorpião. Ele está ali, nela, é ela, e por incrível que pareça, a moça está aprendendo a amá-lo.
A quitação da dívida com ele requer tempo, mas dar o ar que por tanto tempo foi privado, tem preenchido seus pulmões também. Ela sente novos perfumes, um novo sangue circular.
Por mais triste que fica por ter ferido o Outro, se sente, pela primeira vez, acolhida e preenchida de si mesma. Em uma confusão de sentimentos, o novo brigando com o velho, há uma nova liberdade que desponta. Talvez não consiga traduzir em palavras, mas deixar tantas roupas da mala que carregava pra trás a torna leve, livre, preenchida pela esperança de que o novo potencialize, ainda mais, o que está sendo construído ali; que este, ativo, concretize os seus mais íntimos desejos.
No fim, no fundo, a boneca e o escorpião querem viver juntos e serem partes de um só. O que sobreviverá de cada um destes no final?

Um comentário:

Unknown disse...
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